Meditações
Metafísicas: Meditação
Primeira e Meditação Segunda
René
Descartes
Retirado
de: DESCARTES, R. Meditações
Metafísicas – Meditação Primeira e Meditação Segunda.
Guinsburg, J. e Prado Jr., B. (trad.). Nova Cultural, São Paulo,
1987. (Coleção Os
Pensadores).
Meditação
Primeira
Das
coisas que se podem colocar em dúvida
1.
Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos,
recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo
que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia
ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário
tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as
opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente
desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de
constante nas ciências. […]
2.
Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar
que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas,
uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos
cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são
inteiramente certas e indubitáveis, do que às que nos parecem
manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas
encontrar bastará para me levar a rejeitar todas. E, para isso, não
é necessário que examine cada uma em particular, o que seria um
trabalho infinito; mas, visto que a ruína dos alicerces carrega
necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei
inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas
opiniões estavam apoiadas.
3.
Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e
seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei
algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência
nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
4.
Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às
coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas
outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as
conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja
aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel
entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu
negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez,
que eu me compare a esses insensatos.[…] São loucos e eu não
seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.
5.
Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que
tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas
coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em
vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que
estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo,
embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito? Parece-me agora
que não é com olhos adormecidos que contemplo este papel […].
Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas
vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões […].
6.
Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas
particularidades, a saber, que abrimos os olhos, que mexemos a
cabeça, que estendemos as mãos, e coisas semelhantes, não passam
de falsas ilusões; e pensemos que talvez nossas mãos, assim como
todo o nosso corpo, não são tais como os vemos. […]
7.
[…] É preciso, todavia, confessar que há coisas ainda mais
simples e mais universais, que são verdadeiras e existentes […].
Desse gênero de coisas é a natureza corpórea em geral, e sua
extensão; juntamente com a figura das coisas extensas, sua
quantidade, ou grandeza, e seu número; como também o lugar em que
estão, o tempo que mede sua duração e outras coisas semelhantes.
8.
Eis por que, talvez, daí nós não concluamos mal se dissermos que a
Física, a Astronomia, a Medicina e todas as outras ciências
dependentes da consideração das coisas compostas são muito
duvidosas e acertas; mas que a Aritmética, a Geometria e as outras
ciências desta natureza, que não tratam senão de coisas muito
simples e muito gerais, sem cuidarem muito em se elas existem ou não
na natureza, contêm alguma coisa de certo e indubitável. Pois, quer
eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão
sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que quatro
lados; e não parece possível que verdades tão patentes possam ser
suspeitas de alguma falsidade ou incerteza.
9.
Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que
há um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como
sou. Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito
com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso,
nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante,
eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me
pareça existir de maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo,
como julgo que algumas vezes os outros se enganam até nas coisas que
eles acreditam saber com maior certeza, pode ocorrer que Deus tenha
desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de
dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que
julgo alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo
mais fácil do que isso. […]
10.
[…] Razões às quais nada tenho a responder, mas sou obrigado a
confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha
crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar
atualmente, não por alguma inconsideração ou leviandade, mas por
razões muito fortes e maduramente consideradas: de sorte que é
necessário que interrompa e suspenda doravante meu juízo sobre tais
pensamentos, e que não mais lhes dê crédito, como faria com as
coisas que me parecem evidentemente falsas, se desejo encontrar algo
de constante e de seguro nas ciências. […]
12.
Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana
fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e
enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em
enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras,
os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e
enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade.
Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de
olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas
dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. […]
Meditação
Segunda
Da
Natureza do Espírito Humano; e de como Ele é Mais Fácil de
Conhecer do que o Corpo
1.
A Meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas,
que doravante não está mais em meu alcance esquecê-las. E, no
entanto, não vejo de que maneira poderia resolvê-las; e como se de
súbito tivesse caído em águas muito profundas, estou de tal modo
surpreso que não posso nem firmar meus pés no fundo, nem nadar para
me manter à tona. […]
2.
Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo
para outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo
e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se
for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e
indubitável.
3.
Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas;
persuado-me de que jamais existiu de tudo quanto minha memória
repleta de mentiras me representa; penso não possuir nenhum sentido;
creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são
apenas ficções de meu espírito. O que poderá, pois, ser
considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que
nada há no mundo de certo.
4.
Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que
acabo de julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida?
Não haverá algum Deus, ou alguma outra potência, que me ponha no
espírito tais pensamentos? Isso não é necessário; pois talvez
seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo menos,
não serei alguma coisa? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido
ou qualquer corpo. Hesito no entanto, pois que se segue daí? Serei
de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir
sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não
havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos
alguns: não me persuadi também, portanto, de que eu não existia?
Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi,
ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual,
enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua
indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de
que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá
jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma
coisa.
De
sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado
cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por
constante que esta proposição, eu
sou, eu existo, é necessariamente
verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu
espírito.
5.
Mas não conheço ainda bastante claramente o que sou, eu que estou
certo de que sou; de sorte que doravante é preciso que eu atente com
todo cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por
mim, e assim para não equivocar-me neste conhecimento que afirmo ser
mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora.
6.
Eis por que considerarei de novo o que acreditava ser, antes de me
empenhar nestes últimos pensamentos; e de minhas antigas opiniões
suprimirei tudo o que pode ser combatido pelas razões que aleguei há
pouco, de sorte que permaneça apenas precisamente o que é de todo
indubitável. O que, pois, acreditava eu ser até aqui? Sem
dificuldade, pensei que era um homem. Mas que é um homem? Direi que
é um animal racional? Certamente não: pois seria necessário em
seguida pesquisar o que é animal e o que é racional e assim, de uma
só questão, cairíamos insensivelmente numa infinidade de outras
mais difíceis e embaraçosas, e eu não quereria abusar do pouco
tempo e lazer que me resta empregando-o em deslindar semelhantes
sutilezas. Mas, antes, deter-me-ei em considerar aqui os pensamentos
que anteriormente nasciam por si mesmos em meu espírito e que eram
inspirados apenas por minha natureza, quando me aplicava à
consideração de meu ser. Considerava-me, inicialmente, como provido
de rosto, mãos, braços e toda essa máquina composta de ossos e
carne, tal como ela aparece em um cadáver, a qual eu designava pelo
nome de corpo. Considerava, além disso, que me alimentava, que
caminhava, que sentia e que pensava e relacionava todas essas ações
à alma; mas não me detinha em pensar em que consistia essa alma,
ou, se o fazia, imaginava que era algo extremamente raro e sutil,
como um vento, uma flama ou um ar muito tênue, que estava insinuado
e disseminado nas minhas partes mais grosseiras. […]
7.
Mas eu, o que sou eu, agora que suponho que há alguém que é
extremamente poderoso e, se ouso dizê-lo, malicioso e ardiloso, que
emprega todas as suas forças e toda a sua indústria em enganar-me?
Posso estar certo de possuir a menor de todas as coisas que atribuí
há pouco à natureza corpórea? Detenho-me em pensar nisto com
atenção, passo e repasso todas essas coisas em meu espírito, e não
encontro nenhuma que possa dizer que exista em mim. […] Passemos,
pois, aos atributos da alma e vejamos se há alguns que existam em
mim. Os primeiros são alimentar-me e caminhar; mas, se é verdade
que não possuo corpo algum, é verdade também que não posso nem
caminhar nem alimentar-me. Um outro é sentir; mas não se pode
também sentir sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora
muitas coisas, durante o sono, as quais reconheci, ao despertar, não
ter sentido efetivamente. Um outro é pensar; e verifico aqui que o
pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser
separado de mim. Eu
sou, eu existo: isto
é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu
penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar,
deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito agora que
não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando
precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um
entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me
era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira e
verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que
pensa. E que mais? Excitarei ainda minha imaginação para procurar
saber se não sou algo mais. Eu não sou essa reunião de membros que
se chama o corpo humano; não sou um ar tênue e penetrante,
disseminado por todos esses membros; não sou um vento, um sopro, um
vapor, nem algo que posso fingir e imaginar, posto que supus que tudo
isso não era nada e que, sem mudar essa suposição, verifico que
não deixo de estar seguro de que sou alguma coisa.
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