Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778)
Do
pacto social
Suponhamos
os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à
sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua
resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para
manter-se neste estado. Então, esse estado primitivo já não pode
subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida,
pereceria.
Ora,
como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e
orientar as já existentes, não têm eles outro meio de conservar-se
senão formando, por agregação, um conjunto de forças, que possa
sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só móvel,
levando-as a operar em concerto.
Essa
soma de forças só pode nascer do concurso de muitos: sendo, porém,
a força e a liberdade de cada indivíduo
os instrumentos primordiais de sua conservação, como poderia ele
empenhá-los sem prejudicar e sem negligenciar os cuidados que a si
mesmo deve? Essa dificuldade, reconduzindo ao meu assunto, poderá
ser enunciada como segue:
'Encontrar
uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de
cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um,
unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim
tão livre quanto antes.' Esse é o problema fundamental cuja solução
o contrato social oferece.
As
cláusulas desse contrato são de tal modo determinadas pela natureza
do ato, que a menor modificação as tornaria vãs e de nenhum
efeito, de modo que, embora talvez jamais enunciadas de maneira
formal são as mesmas em toda a parte, e tacitamente mantidas e
reconhecidas em todos os lugares, até quando, violando-se o pacto
social, cada um volta a seus primeiros direitos e retoma sua
liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual
renunciara àquela.
Essas
cláusulas, quando bem compreendidas, reduzem-se todas a uma só: a
alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à
comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um dando-se
completamente, a condição é igual para todos, e, sendo a condição
igual para todos, ninguém se interessa por torná-la onerosa para os
demais.
Ademais,
fazendo-se a alienação sem reservas, a união é tão perfeita
quanto possa ser e a nenhum associado restará algo mais a reclamar,
pois, se restassem alguns direitos aos particulares, como não
haveria nesse caso um superior comum que pudesse decidir entre eles e
o público, cada qual, sendo de certo modo seu próprio juiz, logo
pretenderia sê-lo de todos; o estado de natureza subsistiria, e a
associação se tornaria necessariamente tirânica ou vã.
Enfim,
cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um
associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe
cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo oque se perde, e
maior força para conservar o que se tem.
Se
separar-se, pois, do pacto social aquilo que não pertence à sua
essência, ver-se-á que ele se reduz aos seguintes termos: ‘cada
um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção
suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro
como parte indivisível do todo’.
Imediatamente,
esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de
cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos
membros quanto são os votos da assembleia,
e que por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu
comum,
sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma, desse
modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de
cidade
e,
hoje, o de república
ou
de corpo
político,
o qual é chamado por seus membros de Estado
quando
passivo, soberano
quando
ativo, e potência
quando
comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles,
coletivamente, o nome de povo
e
se chamam, em particular, cidadãos,
enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos
enquanto
submetidos às leis do Estado. Esses termos, no entanto, confundem-se
frequentemente
e são usados indistintamente;
basta saber distingui-los quando são empregados com inteira
precisão.
(O
Contrato Social,
livro I, cap VI, São Paulo, Abril S.A. Cultural, 1973.)
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