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Filosofia Política - Segundo Tratado sobre o Governo. Capítulo V – Da propriedade - John Locke - 3ºs Anos

25. Seja que consideramos a razão natural, que nos diz terem os homens, uma vez nascidos, direito à própria preservação, e, consequentemente, à comida e à bebida e a tudo quanto a natureza lhes fornece para a subsistência; seja que encaremos a revelação, que nos dá conta das concessões feitas do mundo por Deus a Adão, e a Noé e seus filhos; é muito claro que Deus, conforme diz o Rei Davi (Sl 113, 24), “deu a terra aos filhos dos homens”, concedendo-a em comum a todos os homens. Tal supondo, contudo, a alguns afigura-se muito difícil como é possível chegue alguém a ter propriedade de qualquer coisa. […] Todavia, esforçar-me-ei por mostrar que os homens podem chegar a ter uma propriedade em várias partes daquilo que Deus deu à humanidade em comum, e tal sem qualquer pacto expresso entre todos os membros da comunidade.
26. Deus, que deu o mundo aos homens em comum, também lhes deu a razão para que o utilizassem para maior proveito da vida e da própria convivência. Concedeu-se a terra e tudo quanto ela contém ao homem para sustento e conforto da existência. E embora todos os frutos que ela produz naturalmente e todos os animais que alimenta pertençam à Humanidade em comum, conforme produzidos pela mão espontânea da natureza; contudo, destinando-se ao uso dos homens, deve haver necessariamente meio de apropriá-los de certa maneira antes de serem utilizados ou de se tornarem de qualquer modo benéficos a qualquer indivíduo em particular. O fruto ou a caça que alimenta o índio selvagem, que não conhece divisas e ainda é possuidor em comum, deve ser dele, isto é, parte dele, que qualquer outro não possa mais alegar qualquer direito àqueles alimentos, antes que lhe tragam qualquer benefício para sustentar-lhes a vida.
27. Embora a terra e todos as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado de comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por este trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens. Desde que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que se juntou, pelo menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros.
28. Aquele que se alimenta das bolotas colhidas debaixo de um carvalho ou das maças apanhadas nas árvores da floresta, com toda certeza delas se apropriou para si. Ninguém pode negar que lhe pertença o alimento. Pergunto então: Quando começaram a pertencer-lhe? Quando as digeriu? Quando as comeu? Quando as cozinhou? Quando as trouxe pra casa? Quando as colheu? E é evidente que, se a colheita, de início, não as fez dele, nada mais poderia tê-lo feito. Este trabalho estabeleceu uma distinção entre o comum e elas; juntou-lhes algo mais do que fez a natureza, a mãe comum de todos, tornando-as assim direito privado dele. E poderá alguém dizer que não tivesse direito a essas bolotas ou às maçãs de que se apropriou por não ter tido o consentimento de todos os homens para que se tornassem dele? Seria roubo tomar para si o que pertencia a todos em comum? Se semelhante assentimento fosse necessário, o homem morreria de fome, apesar da abundância que Deus lhe deu. Vê-se nos terrenos em comum, que assim ficam por pacto, que é a tomada de qualquer parte do que é comum com a remoção para fora do estado em que a natureza o deixou que dá início à propriedade, sem o que o comum nenhuma utilidade teria. E a tomada desta ou daquela parte não depende do consentimento expresso de todos os membros da comunidade. Assim a grama que o meu cavalo pastou, a turfa que o criado cortou, o minério que extraí em qualquer lugar onde a ele tenho direito em comum com outros, tornam-se minha propriedade sem a adjudicação ou o consentimento de qualquer outra pessoa. O trabalho que era meu, retirando-os do estado em comum em que se encontravam, fixou a minha propriedade sobre eles. [...]
30. Assim esta lei da razão torna o veado propriedade do índio que o matou; permite-se que pertençam os bens àquele que lhe dedicou o próprio trabalho, embora anteriormente fossem direitos comuns a todos. E, entre os que se consideram como a parte civilizada da Humanidade, que fizeram e multiplicaram leis positivas para a determinação da propriedade, ainda vigora esta lei original da natureza, para o início da propriedade do que antes era comum; e em virtude dessa lei, o peixe que alguém apanha no oceano, este grande comum da Humanidade que ainda resta, ou o âmbar que qualquer um dele recolhe, tornam-se propriedade daquele que teve o trabalho de apanhá-los, pelo esforço que os retira daquele estado comum em que a natureza os deixou. E mesmo entre nós, a lebre que qualquer um está caçando julga-se daquele que a persegue durante a caçada; visto como, sendo animal que ainda se considera comum sem ser propriedade de um indivíduo particular, quem quer que empregou tanto trabalho para descobrir e perseguir um animal destes retirou-o, por essa maneira, do estado de natureza em que era comum, e iniciou sua propriedade.




46. A maior parte de tudo quanto é realmente útil ao homem […] é, em geral de curta duração estragando-se e perecendo de per si se não consumidos pelo uso; o outro, a prata e os diamantes são artigos a que a imaginação ou o acordo atribuiu valor, mais do que pelo uso real e sustento necessário à vida. […] E se trocasse ameixas que apodreceriam em uma semana por nozes que o alimentasse durante um ano, não causava dano […]. Ainda mais, se trocasse as nozes por um bocado de metal, cuja cor lhe agradasse, ou os carneiros por conchas ou a lã por uma pedra cintilante ou um diamante, e guardasse esses objetos durante toda a vida, não invadiria os direitos de terceiros; poderia acumular qualquer quantidade que quisesse desses objetos duradouros; não se achando o extremo dos limites de sua justa propriedade na extensão do que possuía, mas no perecimento de tudo quanto fosse útil a ela,
47. E assim originou-se o uso do dinheiro – algo de duradouro que os homens pudessem guardar sem estragar-se, e que por consentimento mútuo recebessem em troca de sustentáculos da vida, verdadeiramente úteis, mas perecíveis. […]
50. Mas como o ouro e a prata são de pouca utilidade para a vida humana em comparação com o alimento, vestuário e transporte, tendo valor somente pelo consenso dos homens, enquanto o trabalho dá em grande parte a medida, é evidente que os homens concordaram com a posse desigual e desproporcionada da terra, tendo descoberto, mediante consentimento tácito e voluntário, a maneira de um homem possuir licitamente mais terra do que aquela cujo valor pode utilizar, recebendo em troca, pelo excesso, ouro e prata que podem guardar sem causar dano a terceiros, uma vez que esses metais não se deterioram nem se estragam nas mãos de quem os possui. Os homens tornaram praticável semelhante partilha em desigualdade de posses particulares fora dos limites da sociedade e sem precisar de pacto, atribuindo valor ao ouro e à prata, e concordando tacitamente com respeito ao uso do dinheiro; porque nos governos, as leis regulam o direito de propriedade e constituições positivas determinam a posse da terra.

(LOCKE, John. “Segundo Tratado sobre o Governo”, em Os Pensadores, vol. XVIII, São Paulo, Abril Cultural, 1973, cap. V)

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