O
benefício da dúvida
FERREIRA
GULLAR
Difícil
é lidar com donos da verdade. Não há dúvida de que todos nós nos
apoiamos em algumas certezas e temos opinião formada sobre
determinados assuntos; é inevitável e necessário. Se somos, como
creio que somos, seres culturais, vivemos num mundo que construímos
a partir de nossas experiências e conhecimentos. Há aqueles que não
chegam a formular claramente para si o que conhecem e sabem, mas há
outros que, pelo contrário, têm opiniões formadas sobre tudo ou
quase tudo. Até aí nada de mais; o problema é quando o cara se
convence de que suas opiniões são as únicas verdadeiras e,
portanto, incontestáveis. Se ele se defronta com outro imbuído da
mesma certeza, arma-se um barraco.
De
qualquer maneira, se se trata de um indivíduo qualquer que se julga
dono da verdade, a coisa não vai além de algumas discussões
acaloradas, que podem até chegar a ofensas pessoais. O problema se
agrava quando o dono da verdade tem lábia, carisma e se considera
salvador da pátria. Dependendo das circunstâncias, ele pode
empolgar milhões de pessoas e se tornar, vamos dizer, um "führer".
As
pessoas necessitam de verdades e, se surge alguém dizendo as
verdades que elas querem ouvir, adotam-no como líder ou profeta e
passam a pensar e agir conforme o que ele diga. Hitler foi um exemplo
quase inacreditável de um líder carismático que levou uma nação
inteira ao estado de hipnose e seus asseclas à prática de crimes
estarrecedores.
A
loucura torna-se lógica quando a verdade torna-se indiscutível. Foi
o que ocorreu também durante a Inquisição: para salvar a alma do
desgraçado, os sacerdotes exigiam que ele admitisse estar possuído
pelo diabo; se não admitia, era torturado para confessar e, se
confessava, era queimado na fogueira, pois só assim sua alma seria
salva. Tudo muito lógico. E os inquisidores, donos da verdade, não
duvidavam um só momento de que agiam conforme a vontade de Deus e
faziam o bem ao torturar e matar.
Foi
também em nome do bem – desta vez não do bem espiritual, mas do
bem social- que os fanáticos seguidores de Pol Pot levaram à morte
milhões de seus irmãos. Os comunistas do Khmer Vermelho haviam
aprendido marxismo em Paris não sei com que professor que lhes
ensinara o caminho para salvar o país: transferir a maior parte da
população urbana para o campo. Detentores de tal verdade, ocuparam
militarmente as cidades e obrigaram os moradores de determinados
bairros a deixarem imediatamente suas casas e rumarem para o interior
do país. Quem não obedeceu foi executado e os que obedeceram, ao
chegarem ao campo, não tinham casa onde morar nem o que comer e,
assim, morreram de inanição. Enquanto isso, Pol Pot e seus
seguidores vibravam cheios de certeza revolucionária.
É
inconcebível o que os homens podem fazer levados por uma convicção
e, das convicções humanas, como se sabe, a mais poderosa é a fé
em Deus, fale ele pela boca de Cristo, de Buda ou de Muhammad. Porque
vivemos num mundo inventado por nós, vejo Deus como a mais
extraordinária de nossas invenções. Sei, porém, que, para os que
crêem na sua existência, ele foi quem criou a tudo e a todos,
estando fora de discussão tanto a sua existência quanto a sua
infinita bondade e sapiência.
A
convicção na existência de Deus foi a base sobre a qual se
construiu a comunidade humana desde seus primórdios, a inspiração
dos sentimentos e valores sem os quais a civilização teria sido
inviável. Em todas as religiões, Deus significa amor, justiça,
fraternidade, igualdade e salvação. Não obstante, pode o amor a
Deus, a fé na sua palavra, como já se viu, nos empurrar para a
intolerância e para o ódio.
Não
é fácil crer fervorosamente numa religião e, ao mesmo tempo, ser
tolerante com as demais. As circunstâncias históricas e sociais
podem possibilitar o convívio entre pessoas de crenças diferentes,
mas, numa situação como do Oriente Médio hoje, é difícil manter
esse equilíbrio. Ali, para grande parte da população, o conflito
político e militar ganhou o aspecto de uma guerra religiosa e,
assim, para eles, o seu inimigo é também inimigo de seu Deus e a
sua luta contra ele, sagrada. Não é justo dizer que todos pensam
assim, mas essa visão inabalável pode ser facilmente manipulada com
objetivos políticos.
Isso
ajuda a entender por que algumas caricaturas -publicadas inicialmente
num jornal dinamarquês e republicadas em outros jornais europeus-
provocaram a fúria de milhares de muçulmanos que chegaram a pedir a
cabeça do caricaturista. Se da parte dos manifestantes houve uma
reação exagerada -que não aceita desculpas e toma a irreflexão de
alguns jornalistas como a hostilidade de povos e governos europeus
contra o islã-, da parte dos jornais e do caricaturista houve certa
imprudência, tomada como insulto à crença de milhões de pessoas.
Mas
não cansamos de nos espantar com a reação, às vezes sem limites,
a que as pessoas são levadas por suas convicções. E isso me faz
achar que um pouco de dúvida não faz mal a ninguém. Aos messias e
seus seguidores, prefiro os homens tolerantes, para quem as verdades
são provisórias, fruto mais do consenso que de certezas
inquestionáveis.
Fonte:
Folha de São Paulo,
19/02;2006, Ilustrada. Diponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1902200621.htm>
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