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Conhecimento e Ciência - Texto: Aristóteles e a Ciência

Aristóteles e a ciências

[…] Quando uma obra se torna um obstáculo, isso se deve a dois motivos que é necessário distinguir: ou motivos intrínseco, ligados à coerência da doutrina; ou motivos extrínsecos, ligados ao respeito social que ela inspira e que faz com que ela seja vista por toda parte como uma autoridade. No caso da obra de Aristóteles no início da era moderna, esses dois motivos se conjugam. Sua obra, principalmente em matéria de física, possui uma incontestável coerência interna. Mas em razão de certas circunstâncias que apresentaremos após ter resumido o conteúdo da física de Aristóteles, essa obra adquiriu, além disso, uma autoridade social que reforça ainda o seu crédito.
Aristóteles propôs, na Antiguidade, aquilo que a enciclopédia vai propor no século das luzes: uma tentativa de recapitulação exaustiva de todos os saberes. Ele elabora, notadamente, uma física cuja coerência e força de persuasão é necessário sublinhar. Entender a revolução científica que se instala com Copérnico e a inversão da representação do mundo que se opera nesse momento da história das ideias é primeiramente […] compreender a força persuasiva da física de Aristóteles. É compreender em que medida o sistema de mundo proposto por ele resolvia um número tão grande de enigmas que era considerado indubitavelmente verdadeiro, incontestavelmente exato.
A física de Aristóteles é intuitiva. Ela se apoia sobre a noção de “lugar”. Ao nosso redor, delimitamos “lugares”: o lugar que ocupamos, as coisas que estão situadas diante de nós, aquelas que estão à esquerda, à direita, acima e abaixo. E vemos que os objetos se comportam de um modo específico conforme o lugar que ocupam. As partículas que compõem a fumaça do incêndio sobem em direção ao céu, assim como as esferas de granizo contidas na nuvem caem no solo. Se nós mesmos, da borda da falésia, damos um passo adiante, nos precipitamos no abismo e não nos projetamos para as nuvens. A rolha de cortiça colocada no fundo de uma tigela de água volta à superfície, enquanto o cascalho permanece no fundo. Existem, portanto, 'lugares naturais' e cada objeto, de acordo com seu gênero, tende a buscar o seu próprio lugar natural. Daí decorre uma cosmologia completa. A Terra está no centro do cosmo. Como explicar de outra forma que os corpos com peso tendem “naturalmente” a se dirigir em direção ao centro da Terra?
Entretanto, poderíamos objetar que a Lua não cai sobre a Terra, assim como ocorre com o Sol ou os outros astros que à noite, quando iluminada, deixa ver por uma miríade na extensão escura do céu. Como explicar essa situação? Evidentemente, conclui Aristóteles, não existe uma, mas duas leis no cosmo. Uma lei para o céu marcado pelo movimento circular, pela rotação, pela revolução (no sentido geométrico de retorno periódico à mesma situação, repetição idêntica a si mesma do mesmo movimento); e a lei que nós conhecemos na superfície da Terra, onde tudo é mutável, em virtude da geração e da corrupção, onde tudo aparece para, em seguida desaparecer. Qual o limite entre as duas físicas? A Lua, precisamente. É ela que define a região onde passamos do mundo supralunar, incorruptível e eterno, ao mundo sublunar, corruptível e em perpétua evolução. Eis o que escreveu Aristóteles (1990) no Tratado do céu:

Os antigos designavam como residência dos Deuses o Céu, isto é, a região superior, a única imortal. E nossa argumentação confirma que o Céu é incorruptível e inabalável. Além disso, ele é impassível a respeito de qualquer incômodo que afete os mortais, e, ainda, incansável, pelo fato de não sofrer nenhuma necessidade que o constrinja e que o intercepte, impedindo-o de seguir um movimento natural diferente.

A Terra, por sua vez, está situada necessariamente no centro do mundo, ela é imóvel e esférica. Como os objetos poderiam se dirigir para outro lugar que não o seu centro? O corpo com peso só pode ir em direção ao centro da Terra, e o centro da Terra só pode ser o centro do mundo inteiro. Além disso a Terra é imóvel. Afinal, se ela não fosse, todas as partes solidárias do seu movimento o trairiam, no momento em que a Terra cessasse de estar ligada a essas partes: uma maçã caindo de uma árvore, por exemplo, não cairia em linha reta em direção à Terra, mas seria desviada em seu movimento de queda. Se a macieira estivesse à beira de um lago, seria dentro da água que encontraríamos as maçãs. Ora, não constatamos nada disso. As maçãs estão embaixo da árvore. Os corpos com peso caem sobre a Terra como se fossem atraídos pelo seu centro. Consequentemente, a Terra é imóvel e seu centro coincide com o centro do universo.
Esse sistema apresenta um grande inconveniente aos olhos de um físico contemporâneo, porque ele se apoia sobre a divisão do universo em duas regiões, com leis físicas diferentes em cada uma delas: é um universo dotado de duas físicas. Mas ele apresenta também uma imensa vantagem, pois é intuitivamente convincente para um espírito dotado apenas de seus sentidos para julgar. É também destacável que o questionamento desse sistema seja contemporâneo à criação de instrumentos de investigação do céu que permitem potencializar as capacidades visuais naturais do homem: as observações de Copérnico, primeiro, a luneta de Galileu, em seguida.

(Nouvel, Pascal. Filosofia das ciências – Campinas, Sp. Papirus, 2013. pp. 28-31)


A escolástica: Aliança da teologia e de Aristóteles

Em boa posição na historiografia lendária da ciência figura o combate com a religião, sobretudo a católica, que vai ter, com o século das luzes, a importância que conhecemos. Entretanto, as questões científicas ocupam um lugar reduzido, senão nulo, na teologia judaico-cristã. Encontramos aqui e ali na Bíblia, além da narração da criação do mundo em seis dias, algumas alusões sobre a estrutura do mundo assim criado, mas elas são poucos numerosas e ainda menos explícitas. Lactâncio, preceptor do imperador Constantino, fundamentando-se nessas raras passagens da Bíblia, pretende refutar as alegações de filósofos, como Aristóteles, que sustentam que a Terra é esférica. Mais tarde, em meados do século V, um monge da Alexandria chamado Cosmas afirma, também fundamentando-se em passagens bíblicas e, de novo, contra os filósofos que a Terra é uma superfície plana, duas vezes mais longa que larga, que repousa sobre o fundo do plano do universo. Mas nunca essas cosmologias vão se tornar a doutrina oficial da Igreja. Santo Agostinho sublinha essa indiferença da Igreja às questões científicas, uma vez que ele escreve em Enchriridon (ou Tratado da fé, da esperança e da caridade):

Assim, quando a questão a nós colocada é saber no que acreditamos em matéria de religião, não é necessário sondar a natureza das coisas, como fazem aqueles que os Gregos chamavam de physiologoï; não devemos também acreditar que o cristão seja ignorante da força e do número de elementos (o movimento, a ordem, as eclipses dos corpos celestes), da forma do céu, das espécies e da natureza dos animais, das plantas, das pedras, das fontes, dos riachos, das montanhas, da cronologia e das distâncias, dos sinais de proximidade da tempestade ou de milhares de outras coisas que esses filósofos descobriram ou acreditam ter descoberto… É suficiente ao cristão acreditar que a única causa de todas as coisas criadas, celestes ou terrenas visíveis ou invisíveis, é a bondade do Criador, o único verdadeiro Deus; e que nada existe, exceto Ele, que não deva sia existência a Ele. (Santo Agostinho, Enchridion, ~ 420.)

Em conformidade com esses princípios, a doutrina de Aristóteles e de Ptolomeu, o principal astrônomo da Antiguidade, será regularmente criticada pelas autoridades eclesiásticas: essa doutrina que se quer expressão da verdade testemunha, na realidade, uma vontade de saber indiscreta, que se desvia dos verdadeiros problemas. Em 1210, um concílio que ocorre em Paris chega a proibir o ensino da física de Aristóteles. Mas as relações entre a teologia católica e a filosofia de Aristóteles vão se inverter inteiramente no curso do século XIII, em grande parte pela intervenção de um monge cuja obra vai ter por objetivo explícito aproximar filosofia e teologia. Esse monge é são Tomas de Aquino (1225-1274). Seu programa consiste em mostrar que o sistema de Aristóteles, longe de ser incompatível com a teologia cristã, pode, ao contrário, ser visto como seu complemento, sua contrapartida mundana. Aristóteles expõe o sistema do mundo sem entrar na questão de saber quem é o seu criador; a teologia se pronuncia sobre o autor do sistema do mundo sem entrar na questão de saber como ele funciona. São Tomás vê nessa situação uma complementariedade que ele vai se esforçar para sublinhar.
Para Tomás de Aquino, a fé e a razão não podem se contradizer, pois ambas foram criadas por Deus. Ora, a filosofia de Aristóteles é uma obra da razão. Por consequência, ela deve poder se conciliar com a Bíblia. Longe da ideia de uma ruptura entra a fé e o estudo da natureza (como sustentava, por exemplo, são Boaventura, afirmando que a “a fé começa bem onde a filosofia termina”), são Tomás desenvolve a ideia segundo a qual “a filosofia deve ser a criada da teologia”. A filosofia permite, segundo ele, entender de maneira racional as verdades da fé que, ainda que inacessíveis por si mesmas à razão, não lhe são contrárias. Há uma hierarquia entre a filosofia e a teologia. A segunda está acima da primeira. Entretanto, a primeira pode servir de via de acesso à segunda (Tonquedec 1950). Assim, para são Tomás, o ensino de Aristóteles deve estar plenamente integrado à teologia: a Terra está imóvel no centro do mundo e é esférica, pois é assim que Deus a dispôs. Portanto, Aristóteles em nada é incompatível com os ensinamentos da escritura.
Essa aliança da teologia e da filosofia de Aristóteles é responsável por boa parte do caráter polêmico que vai tomar, aos olhos da religião, o pensamento científico alguns séculos mais tarde. Com efeito, aos sábios que, como Nicolau Copérnico, Giordano Bruno ou Galileu Galilei, vão propor “sistemas do mundo” que contradizem o sistema de Aristóteles, a Igreja vai estimar ter de responder, assim como ela responde aos hereges, mesmo que o elemento teórico que ela defenda (o sistema de Aristóteles) seja, na origem, inteiramente estranho à sua própria doutrina.

(Nouvel, Pascal. Filosofia das ciências – Campinas, Sp. Papirus, 2013. pp. 21-33)


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