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Introdução à Filosofia - Eutífron ou da Religiosidade – Platão

Eutífron ou da Religiosidade – Platão

Vejamos agora um trecho de um dos diálogos de Platão, Eutífron, que constitui um modelo exemplar de método dialético. Na cena inicial, à porta do tribunal de Atenas, Sócrates encontra Eutífron, conhecido como grande entendido em temas religiosos. O filósofo conta que movem contra ele uma ação em que é acusado de corromper os jovens inventando novos deuses e desacreditando os antigos.
Eutífron, por sua vez, comenta que veio ao tribunal por ter apresentado uma acusação de homicídio contra o próprio pai. Conta que a vítima era um servo que, embriagado, degolou outro servo. O pai prendeu o homicida em um fosso, sem ter maiores cuidados com ele, enquanto esperava orientação do encarregado de justiça. Só que o servo assassino não aguentou o cativeiro e faleceu de frio e inanição.
Eutífron julga, então, que seu pai teria se tornado um homicida também, por omissão, e que, ao acusá-lo, estava agindo de maneira piedosa, isto é, conforme o dever para com os deuses. E o diálogo prossegue:

SÓCRATES: – Por Zeus, Eutífron, julgas saber com tanta precisão a opinião dos deuses a respeito do que é e não é piedoso, que não receies que, havendo as coisas sucedido como afirmas, possas cometer uma crueldade movendo esse processo contra seu pai?
EUTÍFRON: – Assim, Sócrates, eu não teria utilidade e Eutífron não se distinguiria do mais comum dos homens se não tivesse conhecimento de todas essas coisas com precisão.
S.: – Perceberás, por conseguinte, meu caro Eutífron, quão proveitoso para mim seria tornar-me teu discípulo, especialmente antes da ação judicial […]
[…]
S.: Explica-me, então, o que consideras piedoso e ímpio [não piedoso].
E.: – Digo que é piedoso isso mesmo que farei agora, pois em se tratando de homicídios ou roubos, sacrilégios, ou qualquer outro crime, a piedade impõe o castigo do culpado, seja este pai, mãe ou outra pessoa qualquer; não agir assim é ímpio. […]
[…]
S.: – Pode ser que o seja, mas também existem outras coisas, Eutífron, consideradas piedosas.
E.: – Evidentemente que sim.
S.: – Recorda, porém, que não te pedi para demonstrar-me uma ou duas dessas coisas, dessas que são piedosas, mas que me explicasses a natureza de todas as coisas piedosas. Porque disseste, salvo engano, que existe algo característico que faz com que todas as coisas ímpias sejam ímpias, e todas as coisas piedosas, piedosas. Recordas-te?
E.: – Recordo-me.
S.: Pois bem, esse caráter distinti
Pois bem esse caráter distintivo é o que Desejo que me esclareças a fim de que analisando com atenção e servindo me dele como parâmetro posso afirmar que tudo o que fazes o outro de igual maneira é piedoso Enquanto aquilo que se distingue disso não é
E.: – Se é isso que queres, dir-te-ei imediatamente.
S.: – Em verdade, é só isso que desejo.
E.: – É piedoso tudo aquilo que agradável aos deuses, e ímpio o que é a eles não agrada.
S.: – Ótimo, Eutífron, respondeste agora como eu esperava que o fizesses, se o que afirmas é correto, embora eu não saiba. Mas é evidente que mostrarás que o que declaras é a pura verdade.
E.: – Sim, claro.
S.: – Muito bem, consideremos o que vamos dizer. Uma coisa e um homem que são agradáveis aos deuses são piedosos, ao passo que uma coisa e um homem detestados pelos deuses são ímpios.
E.: – Sim.
[…]
S.: – E não afirmaste também, Eutífron, que os deuses lutam entre si, que apresentam diferenças e detestam uns aos outros?
E.: – Sim, afirmei.
S.: – Mas quais são essas divergências que causam esses ódios e essas cóleras, estimado amigo?
[…]
S.: – Então qual seria o assunto que, por não ser passível de decisão, causaria entre nós inimizade e nos tornaria reciprocamente irritados? Pode ser que não esteja teu alcance, mas considera, pelo que estou dizendo, se se trata do Justo e do injusto, do belo e do feio, ou do bom e do mau. Com efeito, não é por causa disso que, justamente devido as nossas diferenças e por não poder conseguir uma decisão unânime, nos convertemos em inimigos uns dos outros […]?
E.: – De fato, Sócrates, eis aqui a divergência mais frequente e também as causas que dão origem.
S.: – Não acontece igualmente as mesmas divergências entre os deuses e pelos mesmos motivos?
E.: – Com toda a certeza.
[…]
S.:– E não é verdade que aquilo que cada um deles julga bom e justo é também o que ama, e que o contrário lhe desagrada?
E.: – Sim.
[…]
S.: – Mas são as mesmas coisas, como afirmas, que uns reputam justas e outros, injustas. De suas divergências acerca disso é que se originam as guerras e as discórdias entre eles, não é?
E.: – De fato.
S.: – Temos de afirmar, por conseguinte, que as mesmas coisas são amadas pelos deuses e que lição ao mesmo tempo, agradáveis e desagradáveis.
E.: – Parece que sim.
S.: – O que significa, Eutífron, que algumas coisas poderão ser ao mesmo tempo, piedosas e ímpias.
E.: – É possível.
S.: – Então, estimado amigo, não respondeste à minha pergunta. Pois pedi que me explicasses o que é […] piedoso e ímpio. Porém vimos que o que agrada alguns deuses pode desagradar a outros; portanto, querido Eutífron, não seria de espantar que aquilo que fazes ao castigar o teu pai fosse agradável para Zeus, mas detestável para Cronos e Urano […] e, da mesma maneira, agradável e desagradável para uns e outros deuses que divergem a respeito disso.

PLATÃO, Eutífron – ou da religiosidade, p 39-44. In:______. Diálogos. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

Atividade em grupo

Identifique:

a) o que Eutífron está convencido de conhecer e o parágrafo que expressa esse convencimento;
b) o suposto motivo de Sócrates para querer aprender com seu interlocutor e o parágrafo que retrata esse interesse;
c) a questão investigada por Sócrates nesse início de diálogo;
d) a primeira resposta de Eutífron à questão;
e) o problema identificado nessa primeira resposta;
f) a segunda resposta de Eutífron à questão;

g) o problema identificado nessa segunda resposta.

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